Um homem bom, inteligente e com grande parte da vida repleta de "naufrágios e contratempos", que depois acabaram bem, assim é descrita a vida e obra do artista plástico Nadir Afonso (1920-2013) numa biografia a lançar na quinta-feira, em Lisboa.

Com autoria de Guilherme Pires, "O Homem Infinito: Vida e Obra de Nadir Afonso", livro com chancela Influência, da 20|20 Editora, a biografia capta a vida de uma personalidade "sem limites" e "em movimento perpétuo", sobretudo até regressar a Portugal, e fixar-se definitivamente, em Cascais, na década de 1970.

"Foi um processo de trabalho muito longo, como são todas as biografias, e, neste caso, ainda mais, porque Nadir foi uma pessoa com uma vida repleta de naufrágios, contratempos, passos em falso, decisões que não foram bem tomadas, apesar de depois terem resultado em coisas boas para ele", explicitou o autor, em declarações à agência Lusa, dias antes do lançamento em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Contemporânea.

As peripécias do artista são relatadas com base sobretudo em fontes da família, em particular a viúva, Laura Afonso, que se dedicou à preservação da obra, pessoas que o conheceram, e uma vasta bibliografia que ele deixou, a par da escrita sobre o seu trabalho, muitas entrevistas que deu a jornais, rádios e televisão, bem como documentários.

"Encontrei informação muito diversa que por vezes era contraditória. Foi necessário cruzá-la, e tive de tentar escavar mais fundo para encontrar a verdade", descreveu, sobre um trabalho que durou quatro anos dedicado ao criador nascido em Chaves, em 04 de dezembro de 1920.

Foi “um arquiteto talentoso, modernista”, que trabalhou com dois mestres em França e no Brasil: Le Corbusier (1887-1965), considerado o pai da arquitetura moderna, e Oscar Niemeyer (1907-2012), também visto como um dos principais impulsionadores desta corrente.

Sobre os "naufrágios, contratempos e passos em falso", aconteceram por exemplo, quando, no Porto, em vez de se inscrever no curso de pintura, a disciplina que queria estudar, por influência de um funcionário da Escola Superior de Belas Artes acabou por matricular-se em arquitetura, um episódio que contava várias vezes em cerimónias públicas.

Recusando a ideia de que a arquitetura é uma arte, e porque lhe causava grande angústia, embora se tenha revelado um destacado arquiteto, prescindiu dela em prol da pintura, a sua verdadeira vocação e obsessão, recorda o biógrafo, nas 304 páginas do livro.

A vida conturbada não se ficou por aí: "Teve três mulheres em França, das quais teve três filhas, e outras relações amorosas, em Paris. Procurou espaço para explorar a obra plástica e não encontrou, e foi assim que foi trabalhar com Le Corbusier. Saiu desse atelier para defender a sua tese de licenciatura em arquitetura, e fez escândalo porque era uma reflexão que negava a arquitetura enquanto arte. Depois decidiu ir para o Brasil porque tinha sido convidado por um arquiteto com quem afinal não podia trabalhar, mas acabou por ser aceite por Oscar Niemeyer", conta Guilherme Pires.

"Este tipo de acontecimentos informais, que gerou mudanças súbitas, provocou uma quase ausência de registos pessoais", relatou ainda à Lusa o biógrafo, nascido em Castelo Branco em 1982, que trabalha em edição desde 2008. Guilherme Pires é tradutor, editor, revisor de texto e escritor na oficina editorial Caixa Alta.

A falta de registos aconteceu porque, além de ser uma pessoa muito reservada, Nadir Afonso foi uma pessoa que foi mudando de espaços e não levava nada com ele: "Não havia cartas ou diários, registos áudio e outras fontes documentais, o que dificultou a pesquisa", colmatada pelas fontes ainda vivas, com entrevistas, e da leitura de toda a obra do artista.

"Sobretudo o período de vida em Paris é parco em registos, mas consegui reconstituir esse percurso com a ajuda da viúva de Nadir, Laura Afonso, a última mulher, e o amor da vida dele, com quem viveu desde 1979 até à morte, em 2013, e com quem teve dois filhos, Artur e Augusto", indicou.

Nadir Afonso "esteve sempre à parte de grupos do meio artístico, tinha muito poucas necessidades materiais, mesmo peças de roupa ou outros objetos pessoais, e viveu muito em função de uma busca interior”.

“Em função disso partia, e quando o fazia não olhava para trás", recorda, sobre a personalidade de um artista que foi "principalmente um pintor e um pensador, mas também foi um arquiteto extremamente competente e talentoso"

O artista português "trabalhou com le Corbusier projetos que são considerados ícones da arquitetura moderna e contemporânea", assinalou Guilherme Pires.

Depois de algumas décadas turbulentas, Nadir Afonso abandonou definitivamente a arquitetura em 1965 para se dedicar à pintura, e quando conheceu Laura, a sua vida adquiriu uma estabilidade pessoal e profissional, em Portugal, até ali inédita.

"Pela primeira vez cria raízes, casam e vão viver para Cascais, onde fica até ao fim da vida. Como era um misantropo, no sentido de querer estar sozinho, e não de detestar pessoas, estabiliza toda a vida, e deixa de ter acontecimentos do ponto de vista biográfico: a parir de 1980 o seu quotidiano resume-se a pintar, pensar, escrever e a cuidar da família", apontou.

Como encontrou a partir daí, ao longo de trinta anos de vida, "pouco sumo biográfico", Guilherme Pires enfrentou um "desafio interessante", para não criar uma "biografia desequilibrada" de um criador fascinado pela matemática e pela geometria, parte fundamental da teoria e estética de Nadir Afonso.

Para o criador, a arte, se queria ser eterna e universal, chegar a todas as pessoas, tinha de respeitar regras presentes na natureza, como os círculos perfeitos.

Primeiro livro oficial de Guilherme Pires, resulta de um convite que surgiu em 2017 de Laura Afonso e do editor Manuel Freitas.

"Fiquei interessado porque a figura e obra me interessavam, mas, acima de tudo, porque era uma muito boa oportunidade de explorar características de Nadir Afonso que me dizem muito pessoalmente: a misantropia dele, o gosto por passear, o gosto pela reflexão, o trabalho simultâneo entre a arte da pintura e a filosofia estética sobre a pintura, e o trabalho na arquitetura", justificou à Lusa.

Depois de um processo tão intenso, e de ter estado totalmente imerso em tanta informação sobre a vida e obra do artista, o biógrafo tem "muita pena de não o ter conhecido e não poder falar com ele".

"Todas as biografias são morosas e um trabalho gigantesco, quase de garimpeiro, a procurar as pérolas e a verdade, que é frágil. Ele era um homem bom e extremamente inteligente e dotado do ponto de vista intelectual, e tinha também o dom da palavra", razão pela qual a biografia está pontuada por citações de Nadir Afonso.

O lançamento de "O Homem Infinito: Vida e Obra de Nadir Afonso" está marcado para quinta-feira, às 18:30, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa.

fotos: DR



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