Manuel Igreja

Manuel Igreja

A Guerra dos Cravos

Pouco tempo depois da revolução de 25 de abril de 1974, quando a poeira assentou e se viu a irreversibilidade das coisas, dizia-se, através de uma canção que “Cravo vermelho ao peito a todos fica bem. Sobretudo faz jeito a certos filhos da mãe”, retratando numa mera frase toda uma realidade concreta e complexa.

Como sabemos, devido ao gesto simples, mas enorme em simbolismo, de uma mulher, um cravo, espontaneamente colocado no cano duma espingarda, foi feito símbolo concreto de desejos sonhados e de caminhos a percorrer na direção do futuro que se queria construir.

Devido a razões que não vêm aqui ao caso, houve uma rutura, um regime caiu de podre porque apodrecia tudo em seu redor, fixado que estava em olhar para o relógio da história, colocado na parede do salão, comum com os ponteiros parados, mas nem por isso certos duas vezes em cada dia.

Como se diz num sublime poema, aconteceu uma madrugada de um dia inteiro e limpo, entrou um raio de sol no casarão assombrado e abriram-se as janelas de par em par para que a democracia desse em flor sujeita aos cuidados de cada qual para que fosse direito e vivência de todos.

Uns, que sabiam dela, de imediato assumiram e festejaram, outros, que dela sabiam, com pantominice dela se travestiram. Outros que a não queriam, uns muito poucos, que nunca a tinham querido, continuaram a não a desejar para si, mas essencialmente para os outros.

Como é próprio da democracia, cada um sabe de si e há lugar para todos sem perseguições nem castigos. Poderemos dizer e questionar se será mesmo assim, mas isso são outros quinhentos como diz o povo. Certo, é que já vamos com meio século com um regime por ela, pelo Democracia enquadrado. Faltará um quinhão razoável de liberdade, mas vale mais que nada e do que era antes.

Mas, volvendo ao cravo vermelho na lapela, sem irmos aos de outras cores que, sendo igualmente belos, mais não servem do que para nos encantar com a sua beleza natural, não tiveram a sorte de passarem a habitar a substância do tempo que nos diz das nossas alegrias e das nossas amarguras como os da cor do fogo que serviram para esconder a cinza que ia em algumas almas.

Quer dizer, a cinza, que acarreta a saudade dos tempos cinzentos, ainda não foi retirada em certas figuras viradas figurões que são essencialmente figurinhas, agora com a intenção descabida, mas pensada de pretender reescrever a história com estórias que nunca aconteceram.

Viu-se isto, recentemente, com o assinalar dos acontecimentos políticos e militares ocorridos no dia 25 de novembro de 1974 na casa maior da Democracia, o Parlamento, onde pululam e exercem missão os eleitos pelo cidadãos como é regra após o derrube do regime que nos acorrentava fora de época e de contexto como se a modernidade fosse um pecado capital.

Como se não estivessem a acontecer coisas de enorme gravidade neste nosso mundo feito palco em que se representa uma peça protagonizada por loucos e por gabirus, os políticos da nossa praça, entretiveram-se a relevar o já está devidamente relevado e esclarecido.

Aqueles que perderam, os dos dois extremos do espetro políticos, engalfinharam-se como se ambos tivessem vencido, enquanto os outros por conveniência ou por comodismo foram na onda sem se deixaram enrolar na espuma. Os que nunca puseram um cravo no casaco temerosos dos danos ou por falta de identidade juraram fé e fizeram loas à Democracia. Os outros, tendo-se como donos do jardim dos cravos, esconjuram com raiva quem de cravos só conhece os brancos.

Os da direita mais extrema que ao tempo dos acontecimentos tudo fizeram que o tempo voltasse para trás, alguns do centro, a quem pouco apoquenta o rumo seguido, fizeram o papel de quem sabe escrever por linhas tortas. Os da esquerda mais da ponta, desfraldaram a bandeira da vitória, como se estivesse instaurado um regime onde o sol sempre brilha nos amanhãs que cantam. Dizem-se cómodos na democracia liberal.

Uns e outros enganam-se porque não sabem, ou por que lhes convém. Sinal dos tempos, engalfinharam-se na guerra dos cravos, julgando que nós nascemos ontem e que vamos em cantigas de escárnio e maldizer.

Filhos da mãe.



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