Manuel Igreja
A vindima dos nosso descontentamento
Já se lavaram os cestos e os mostos já fermentam. Enólogos e bactérias fazem o seu trabalho para que os vinhos venham ser de se lhes tirar o chapéu, com tudo indica que o venham a ser. O clima ajudou e os homens quiseram e souberam fazer.
A vindima deste ano, o vigésimo terceiro deste nosso desconchavado, mas desafiante século estão prontas. O verão teima em não dar lugar ao outono como que mostrando que pode mais, andamos menos sombrios se calhar por isso, digo eu, mas no que se refere à lavoura propriamente dita, nota-se alguma inquietação.
Aliás, tanto se nota, que pela primeira vez desde há muitos anos, por parte da produção se começam a vislumbrar alguns lampejos de união germinando a ideia sabida de que esta faz a força. Posso estar enganado, mas algo começa a mexer. Teme-se o futuro mais imediato pois o presente revelou-se com pormenores inquietantes a lembrar o passado de há cem anos.
Repetiram-se cenários tristes. A natureza foi generosa e compensou o esforço humano e as despesas feitas no granjeio, e não faltaram uvas e das boas. Seria a situação a roçar a perfeição, mas não foi nem é. Os relatos dizem-nos de lavradores figuradamente com a boina na mão a pedir que lhes fiquem com as uvas a qualquer preço só para que não fiquem nas vinhas, pecado maior, para quem se criou a labutar contra estios tórridos e invernos de gelar.
As dinâmicas de gestão e de mercado levaram a isto. Não é necessário ser-se doutor em económicas, mas se chagar a esta conclusão. Não entanto, também não é necessário ser-se para se saber que elas, as dinâmicas, mais do que um resultado, são uma consequência do que se preparou, do que se evitou e do que se construiu. Semear a necessidade e aguçar o apetito do consumidor final, de quem estraga as rolhas para abrir a garrafas, exige saber, inteligência e muito trabalho.
Parece fácil, mas não é. Sabemos que está tudo inventado, mas não basta. A prova é que no Douro Vinhateiro, a qualidade não está a ser factor suficientemente forte para só por si, garantir a entrega garantida das uvas para que sejam vinificadas como é o seu grandioso e natural destino. São por demais e foram rejeitadas como lindas moças casadoiras, mas de má fama.
Como é obvio perante isto, os preços descerem ou vão descer até à ruas da amargura, num caminhar que se teme venham a repetir-se, pois bem sabemos que a ocasião faz o ladrão e o hábito faz o monge, muito mais quando por excesso se pode desdenhar do produto por falta de necessidade imediata dele.
Segundo os entendidos, haverá no Douro cerca de sessenta mil pipas de vinho que não o generoso, em excesso. Não porque não seja do bom, mas porque não tem saída engarrafado para ser vendido a preços decentes e justos. Não me custa a acreditar que sim, mas confessadamente não percebo como é que ao mesmo tempo o Douro é a região que mais vinho compra a outras regiões, inclusivamente de outros países.
São coisas muito cá nossas e próprias da economia de mercado sempre implacável com os mais fracos, com os menos eficientes e com os menos avisados. Quem não come, é comido e esquecido. Por isso urge que se implante a nossa força. Não a dos braços e dos ânimos pois essas temos. Será antes a que resultará do facto de sermos organizados e sem esperar que outros olhem por nós. Será também a quem advém do facto de termos uvas que sangram para darem vinhos de excelência.
A vindima de 2023 parece ser a vindima do nosso descontentamento, não ainda acerca das uvas para o vinho fino, mas ainda só nas outras. Mas pode ser mera questão de tempo, pois o vinho do Porto começa a sofrer de um paradoxo. O tempo é ao mesmo tempo o seu melhor amigo porque o melhora, mas pode também ser o seu pior inimigo, porque não está a conseguir ser gostado pelas novas gerações. O seu apreciar pode não ter sucessão.
Urge, pois, que dos alertas nasça a ação. É tempo de cada um se perguntar o que pode fazer pela lavoura duriense, para que todos façam e todos beneficiem na nossa economia regional que grosso modo começa e acaba na vinha e no vinho.