Luis Ferreira
Demita-se?
Se alguma coisa nos pode ensinar a História é o facto de ela ser rica em casos que servem de exemplos que podem justificar acções presentes ou futuras e deles tirar a devida lição. No entanto, muitos não querem aprender com ela e remetem para o seu egocentrismo toda a moralidade envolta em toga justiceira, esquecendo mesmo o seu próprio passado.
Ao longo do nosso tempo republicano e já lá vão mais de cem anos, tivemos várias experiências políticas, nem todas bem sucedidas. Com tempo de duração variado, elas lá se foram sucedendo ao ritmo que o tempo político admitia. A primeira República trouxe muitas incertezas na amálgama das mudanças. A adaptação não foi fácil. A segunda República conduziu-nos a uma nova experiência que liderada por Salazar durante trinta e seis anos, iria descambar numa Revolução a 25 de Abril de 1974. Revolução idêntica à de 1926 quando o General Gomes da Costa tomou conta do governo, instalando uma ditadura militar com o intuito de acalmar o país e os políticos. Uma e outra, foram lideradas por militares e ambas com o objectivo de mudar a situação política e económica de Portugal.
Neste tempo de mudanças, houve também um general que sendo candidato à presidência da República, afirmou que se ganhasse a primeira coisa que faria seria demitir Salazar. Não ganhou. Não demitiu ninguém.
Na revolução de Abril, ganhou-se a democracia e a liberdade e todos pensaram que tudo era agora possível. Quase o foi! Nesta altura regressaram a Portugal aqueles que Salazar tinha afugentado. Cunhal e Soares entraram em Portugal e tiveram o seu protagonismo natural. Ambos pertenceram a vários governos. Nem todos bem sucedidos! Mas se Cunhal nunca chegou a Primeiro-ministro, já o mesmo não aconteceu com Mário Soares. Os anos passam, mas não nos devemos esquecer do que então se passou. Alguns esquecem facilmente!
Em frente ao aparelho de televisão assisti esta semana a um congresso ou seminário organizado por Mário Soares para falar sobre a Constituição Portuguesa. Rodeou-se de figuras conhecidas com o objectivo de o ajudarem a criticar, não a Constituição, mas o governo e o Presidente da República. Algumas das figuras convidadas negaram-se a participar no colóquio. Tiveram certamente as suas razões.
A minha indignação surgiu quando na sua intervenção, Mário Soares se atreveu a dirigir-se ao Presidente da República e disse diretamente que se demitisse. Demitir-se? Então a revolução de abril não serviu para nada? Eu pensava que a democracia servia para eleger os órgãos de governo por um determinado tempo e apeá-los, se for o caso, quando esse tempo terminar, nunca antes. Realmente parece que Mário Soares tem a memória curta ou não se quer lembrar que quando foi primeiro-ministro gerou uma crise económica enorme, tendo levado o país à bancarrota e ser obrigado a pedir ajuda ao FMI, mergulhando Portugal numa situação difícil da qual só saímos muito mais tarde, situação essa que levou efetivamente à queda do governo de Soares. Nessa altura ninguém pediu a sua demissão. Ela caiu naturalmente. É assim que se cai em democracia! Como é triste recordar certas coisas!
Mas por vezes as verdades saem da boca que não se espera e foi o caso de um seu convidado. Carlos do Carmo. Convidado a fazer uma intervenção sobre a Constituição e Mário Soares, não se esperaria que ele começasse por dizer que se lembrava de Mário Soares como primeiro-ministro e que não teve jeitinho nenhum para isso! Assentou bem a crítica.
Uma pessoa que governou muito mal Portugal, que causou uma crise económica e nos levou à falência e ao FMI, terá o direito e a indelicadeza de se dirigir ao mais alto dignatário da nação e dizer-lhe que se demita? Com que direito? Com que razões? A liberdade democrática também tem limites e naturalmente, ela acaba onde começa a liberdade dos outros.
Podemos ter todos, as nossas razões para criticar a política do governo, as atitudes do Presidente da República e não estarmos satisfeitos com a política seguida, mas nada nos dá o direito de alterar as regras da democracia mesmo sabendo que a soberania reside no povo.
Hoje certamente, ninguém está satisfeito com o regime de austeridade a que estamos sujeitos, mas se podemos e devemos demonstrar esse sentimento de insatisfação, devemos fazê-lo com a educação que nos merece esse mesmo sentimento. Não me pareceu que a intervenção de Mário Soares tivesse sido educada. Foi desrespeitosa. Vindo de alguém que também foi Presidente da República e que sabe o que isso representa, o que disse foi deselegante e de uma baixeza política muito grande. Além disso levantou suspeições sobre o povo português que podem levar a uma sublevação nacional. Vale o ser pacífico este povo a que pertencemos e também ele se ter insurgido com o que o “ilustre” político disse.
Não, senhor doutor Mário Soares. O Presidente da República não tem de se demitir só porque o senhor o diz. A democracia e abril permitiram elegê-lo e só a democracia o poderá apear.