Luis Guerra

Luis Guerra

O Destino da Ação Social

O processo de descentralização no domínio da ação social, iniciado com a publicação da Lei nº 50/2018, de 16 de agosto e regulado pelo Decreto-Lei nº 55/2020, de 12 de agosto, teve recentemente um novo episódio, com a aprovação por parte do Conselho Geral da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) da proposta do Governo para reforço dos meios financeiros associados à transferência das respetivas competências nessa área.

Com efeito, como se pode ler no sítio na Internet da ANMP, «o novo diploma da Ação Social, que resulta das intensas negociações da ANMP com o Governo, vai permitir a transferência, para os municípios, de mais de 91 milhões de euros, o que representa mais de 35 milhões de euros a mais do que inicialmente previsto.

Estabelecerá, também, os critérios para a atualização dos valores a transferir para os municípios relativos a acordos e protocolos, subsídios eventuais e recursos humanos, sendo aditadas ao mapa dos encargos rubricas adicionais (…).

Relativamente aos recursos humanos, para além de estar garantido um técnico em cada município, estabelece-se um rácio de 100 processos familiares de Rendimento Social de Inserção (RSI) por técnico e de 250 processos familiares de Atendimento de Ação Social (AAS) por técnico, o que permite um aumento de 382 técnicos, neste setor, nos municípios.

Com este novo diploma, (…) é criada uma nova rúbrica relativa aos custos com instalações e funcionamento, garantindo-se, a todos os municípios, um valor mínimo, independentemente do número de processos».

Deste modo, tudo se conjuga para que o processo de transferência de competências neste domínio esteja concluído e comece a ser aplicado em todos os municípios no decurso do ano de 2023, senão no início do mesmo, como tinha sido estipulado, pelo menos no princípio do 2º trimestre, como reclama a ANMP.

Recorde-se que, nos termos do citado Decreto-Lei nº 55/2020, passa a ser competência dos órgãos municipais, nomeadamente:

- Assegurar o serviço de atendimento e de acompanhamento social (SAAS);

- Elaborar as cartas sociais municipais, incluindo o mapeamento de respostas existentes ao nível dos equipamentos sociais;

- Elaborar os relatórios de diagnóstico técnico e acompanhamento e de atribuição de prestações pecuniárias de caráter eventual em situações de carência económica e de risco social;

- Celebrar e acompanhar os contratos de inserção dos beneficiários do rendimento social de inserção (RSI); e

- Coordenar a execução do programa de contratos locais de desenvolvimento social (CLDS), em articulação com os conselhos locais de ação social.

No que respeita à execução das ações previstas nos planos de ação que integrem os CLDS, a lei prevê a possibilidade da câmara municipal selecionar instituições de solidariedade social para desenvolver a mesma, ouvido o Conselho Local de Ação Social.

Paralelamente, quanto ao serviço de atendimento e de acompanhamento social de pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e exclusão social, assim como em relação à celebração e acompanhamento dos contratos de inserção dos beneficiários do RSI, a câmara municipal pode contratualizar o exercício da respetiva competência com instituições particulares de solidariedade social ou equiparadas.

Estas disposições legais visam concretizar o direito à segurança social, previsto no artigo 63º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no âmbito do qual se prevê que todos têm direito à segurança social, nomeadamente em situações de doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, cabendo ao Estado, para tanto, organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado.

Além disso, nessa disposição constitucional também se estabelece que o Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a atividade e o funcionamento das instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social, nomeadamente nos âmbitos da proteção da família e das crianças, da juventude, dos cidadãos com deficiência e da velhice.

Deste modo, a Constituição reconhece o importante contributo que as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e outras equiparadas têm no apoio aos cidadãos mais vulneráveis, admitindo a integração das mesmas no esforço coletivo para promover a sua inclusão, mediante a sua articulação com o sistema público de segurança social.

Contudo, a lei não esclarece (ainda) como deve ser feito o processo de seleção e escolha das instituições de solidariedade social com as quais as câmaras municipais podem contratualizar o exercício das suas novas competências no domínio da ação social.

Ora, já houve alguns municípios que se adiantaram em relação à maioria e já aceitaram a transferência das competências neste domínio, tendo imediatamente celebrado protocolos com uma ou mais IPSS’s para o exercício efetivo das mesmas.

E, portanto, nestes casos, na prática, o Estado, entendido em sentido amplo (Administração Pública Central e Local), deixa de ser um prestador no campo da ação social, para se converter em mero financiador dos respetivos serviços por parte das instituições do terceiro setor.

Como se sabe, o debate quanto ao papel que cabe ao Estado no domínio da satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais, tem dividido as forças políticas de inspiração socialista, de um lado, e aquelas de orientação liberal ou conservadora, do outro. Na verdade, tradicionalmente, as primeiras têm defendido a figura do Estado prestador, através da existência de serviços públicos capazes de garantir a universalidade e igualdade dos direitos, enquanto as segundas reservam para o Estado o papel de financiador, deixando para as instituições de solidariedade social a função de prestar os serviços de apoio social.

Abstratamente, ambas as soluções podem ser consideradas aceitáveis para efeitos de dar resposta aos direitos fundamentais sociais, desde que algumas condições sejam cumpridas, nomeadamente quanto à universalidade e igualdade das respostas sociais e à boa gestão dos recursos públicos.

Com efeito, a razão de ser dos direitos fundamentais sociais é, antes do mais, garantir a igualdade de oportunidades, visando compensar as desvantagens, permanentes ou temporárias, de determinados grupos sociais, por efeito da saúde, idade, condição física ou mental, situação laboral ou outra causa de exclusão. Porém, além disso, os direitos fundamentais sociais são também uma condição do exercício cabal dos direitos civis e políticos (direitos, liberdades e garantias, na terminologia constitucional). Na verdade, sem o acesso à educação ou a proteção da saúde, por exemplo, as liberdades de expressão, reunião e manifestação, perdem muito do seu valor. Simetricamente, sem ter em vista a promoção dos direitos pessoais, como é o caso do direito ao desenvolvimento da personalidade, os direitos fundamentais sociais podem tornar-se instrumentos de um paternalismo asfixiante. Assim, o apoio social não pode nem deve limitar-se a medidas paliativas da pobreza e exclusão social, tão afins às correntes mais assistencialistas, devendo ter em vista as condições para que os cidadãos vulneráveis possam desenvolver o seu projeto de vida com autonomia, apesar das circunstâncias desfavoráveis.

Por último, o grau de satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais está sempre dependente dos recursos financeiros disponíveis, pelo que é importante fazer as escolhas mais adequadas para o fim em vista, de modo a lograr as respostas mais eficazes.

Estas considerações permitem compreender o que está em jogo nesta reforma legislativa. Ora bem, ao contratualizar com IPSS’s as suas novas competências sociais, os municípios deixam de ser diretamente responsáveis pela contratação dos técnicos de apoio social que as vão executar, de acordo com regras concursais transparentes, podendo prejudicar a qualidade dos serviços e contribuir para degradar o estatuto remuneratório dos trabalhadores sociais; além disso, a contratualização por ajuste direto com as IPSS’s não permite que diversas entidades do setor social possam apresentar as suas candidaturas e que seja selecionada a melhor proposta para o efeito em vista; por último, a execução das políticas públicas sociais deixa de estar sujeita a um escrutínio democrático direto por parte da comunidade em geral, uma vez que o órgão diretivo das IPSS’s só responde perante os seus associados, apesar de ficar sujeito a fiscalização por parte da autarquia local quanto ao cumprimento do protocolo estabelecido.

Assim sendo, para que este processo de descentralização de competências se traduza numa efetiva melhoria das respostas sociais e não se limite a ser um meio do Estado alijar responsabilidades e poupar recursos, é necessário acompanhar a forma como as câmaras municipais vão desempenhar as suas novas competências, direta ou indiretamente, garantindo que a ação social não se desvia do seu propósito de formar uma sociedade mais inclusiva.

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

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