Ana Soares

Ana Soares

Porque eu não me estou a Catar

É impossível fugir ao tema. Como adepta de futebol, adorava estar a escrever uma crónica sobre a incursão de Portugal neste mundial, mas muito mais importante que falar sobre o desporto Rei é falar sobre outro “desporto”, espelho de uma sociedade cheia de verniz por fora e espaço oco bafiento por dentro, onde o que importa é ter mais que o vizinho do lado e, quando isso não acontece, criticá-lo pelos defeitos que tem e os que lhe podemos colar.

Ora exactamente. Esta é (mais uma) crónica sobre Cristiano Ronaldo. E é mais uma crónica sobre Cristiano Ronaldo porque apesar de não o conhecer – com muita pena, confesso! – acho de uma injustiça tremenda o que está a acontecer. E não falo de não ter entrado no campo no início de jogo, pois acredito que o respeito é primordial em qualquer relação (de todos e para com todos) e que cada um tem o seu tempo, o seu espaço e que muitas vezes é difícil encontrá-lo pelas mudanças que se impõem pelo passar do tempo. Mas falo pela pessoa, pelo miúdo madeirense cujo destino que se adivinharia seria muito longe de passadeiras vermelhas, de contas milionárias e de ser um dos símbolos da nossa Nação, porque não haja dúvida que o “I’m from Portugal” é muitas vezes melhor entendido se “Do you know Cristiano Ronaldo?” seguido de “Oh, sure!” e isto é uma verdade incontornável. E diz muito sobre o que agora se quer diabolizar.

A verdade é que no dia-a-dia todos nós esperamos que, no nosso emprego, nos contextos em que nos movimentamos, compreendam as faltas ou cansaço pelas doenças dos nossos Filhos, dos nossos Familiares e é até de uma plena injustiça quando assim não é, uma vez que cada um de nós é um excelente trabalhador (pelo menos para si próprio…). Mas com Cristiano Ronaldo, não. Aquele que cresceu pelo seu esforço (lembram-se? Primeiro a chegar e último a sair dos treinos?) não merece essa consideração e, quando exige esse respeito, é logo rotulado de “Deve achar que é o maior, não?! Quanta soberba…!”. Mas aí é que está, não é. À escala dele, certamente diferente da grande maioria dos mortais - com muita mais atenção, muita mais pressão, mas também muito mais dinheiro -, o que espera é também o reconhecimento, o respeito, a consideração que cada um de nós acha que merece em caso próprio mas poucas vezes em relação ao outro e isto é tóxico e revela, por uma parcela da sociedade bastante considerável, falta de empatia pelo próximo. E não é por acaso que a empatia é o oposto do egoísmo…

Vi a entrevista de Cristiano Ronaldo a Piers Morgan e o que mais retive foi uma pessoa magoada, que se sente injustiçada e que quer que lhe seja feita justiça. A justiça que cada um de nós defende para si tantas vezes quando não tem a promoção que espera, ou o reconhecimento é maior para o colega que “não faz mas aparenta”, ou até a revolta para com quem chega de novo e não quer aprender com quem já lá está, pois acha que tem todas as competências necessárias e que a experiência vale pouco. Talvez neste caso as semelhanças com a realidade não sejam apenas meras coincidências. A forma como Ronaldo chamou tantas vezes para a conversa a sua Família, a sua Companheira e Filhos, faz-me ver um homem que tem como referência a Família, o que por si só parece – tantas vezes – ser um pecado capital nos dias de hoje. Não me revejo em algumas actitudes de Ronaldo, nem da sua Família, que facilmente caracterizamos como excessivas, mas – cá entre nós que ninguém nos ouve – que ninguém ouse meter-se com as minhas Filhas que certamente conhecerá uma Ana Soares bastante grosseira, com as garras de fora e sem temer o que apanha pela frente!

Ronaldo lutou – porque nada lhe foi dado, foi conquistado! – para ser o melhor na sua profissão. E não me venham dizer que é ridículo tanta conversa sobre alguém que corre atrás de uma bola

porque isso não passa de falta de respeito por todas as profissões. Até porque muitas vezes são os mesmos que se insurgem quando alguém (da casa do lado, claro, nunca da sua) faz um comentário menos favorável a profissões mais braçais e menos intelectuais… Mas de incongruências está a vida – e as redes sociais em particular – cheia… Ronaldo não veio de um meio privilegiado que lhe abriu portas. Mas é – recuso-me a usar “foi” – alguém que levou Portugal a ser falado ao mais alto nível, a abrir portas para tanto que se fez com a sua imagem em favor deste canto à beira-mar plantado. Alguém que nas galas mais importantes do desporto sempre falou do seu país, das suas tradições (quem se esquece do “podem soltar os fogos” no início do discurso de entrega do prémio jogador do Ano FIFA em 2008?) e não se lembra apenas do seu País quando enverga a camisola da selecção ou em fim de carreira para receber títulos honoríficos, não merece festejos por um período menos feliz. Não! Deveria ser um orgulho para todos nós termos um dos melhores jogadores de sempre de futebol como concidadão, como sucede em tantas outras áreas das ciências às humanidades.

E como se tudo isto não bastasse, parece que houve um apagão generalizado de memória de tanto que Ronaldo fez e que até há bem pouco tempo fazia dele a coqueluche de ouro da nação: a sua vertente solidária. Ronaldo deu a cara por inúmeros projectos solidários e – sem disso dar alarido – ajudou muitas pessoas. E não me venham dizer que tem dinheiro para isso. Pois tem, mas é dele. Tal como o nosso (muito menos, é certo) poderia ser tantas vezes melhor gasto e não é por decisão nossa e ninguém tem nada a ver com isso. Ou por ser o Ronaldo o princípio é o oposto do que defendemos para nós?

Nos campos Ronaldo não precisa de defesa. A sua performance – desde bem cedo até aos 37 anos que tem agora – fala por si. Mutando, como é inevitável pelo passar do tempo, mas sem por isso deixar de ser dos melhores dos melhores. E não, não goleámos a Suiça porque Ronaldo não entrou no 11 inicial, nem era (como infelizmente não foi) meio caminho para chegarmos à final. Da mesma maneira que nenhum de nós é sempre formidável no seu emprego, dia após dia.

Ronaldo é muito mais do que mais um jogador. É um líder, um capitão, um bastião nacional. E quem se regozija com o mal dos símbolos da sua nação, só faz mal a si e aos seus. Sinceramente prefiro cair com Ronaldo do que ter continuado em pé com quem mal canta o hino nacional. E tinha um sonho, que era o sonho de tantos de nós: ganhar este mundial e não o concretizou! Mas que se lembre do tanto que nos fez sonhar, de tantos sonhos que concretizou a quem mais precisava e do tanto que, seja qual for o seu futuro, nos fará sonhar!

E quando chegar o dia de deixar de ser jogador (o que não creio que seja para já), cá estaremos também para aplaudir de pé. Tal como todos nós merecemos apoio e esperamos uma “palmadinha nas costas” quando mudamos de emprego ou, finalmente, vamos para a reforma. Porque, tal como Cristiano Ronaldo, somos humanos. Porque, tal como Cristiano Ronaldo, temos família e queremos que seja respeitada. Porque, tal como Cristiano Ronaldo, (mas tantas vezes com menos foco e determinação) queremos que o nosso esforço seja reconhecido.

Porque gosto de futebol, mas há coisas muito mais importantes que se prendem com os próprios valores da sociedade e, para isso, não me estou a Catar!


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